segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Carvânico S.A.


Antes de mais nada, gostaria de pedir desculpas pela demora em trazer uma nova publicação à página. Algumas doenças e infortúnios na família acabaram me distanciando do "Projeto Vapores" — rsrsr —, mas espero conseguir retomar a escrita tanto do livro quanto dos posts à partir de agora.
(Na verdade demorei uns 20 dias para escrever esse post/conto/possível prefácio do livro, então acho que ainda não vou conseguir retomar o projeto com a dedicação necessária... infelizmente... mas a tendência, ainda assim, é melhorar!)

Como eu disse no texto anterior, o cenário do livro Vapores é concebido no estilo Steampunk, ou seja, é um cenário em que a tecnologia à vapor se desenvolve de modo extraordinário. E a primeira coisa que criei para o cenário foi um motivo para isso. O nome deste motivo é Carvânico.
Tudo começa na década de 1840. O imperialismo é prática comum, ter o melhor exército significa ser dono de tudo o que se quiser. Todos os países europeus têm já as suas colônias, mas nenhum exército é mais poderoso que o Inglês. As expedições inglesas, buscando "a origem da civilização ocidental", são comuns, e assolam várias culturas, levando para seus museus as peças que sobram destas civilizações quebradas.
E com certeza poucas peças despertam maior interesse do que as egípcias.
Uma expedição britânica estava acampada num pequeno oásis, um raro descanso para desbravadores do deserto, e aproveitava para negociar com outras caravanas, renovando mantimentos e água, procurando coragem para seguir viagem. Um dos expedicionários, um grande geólogo, estava esperando a água na fila do poço, quando um garoto lhe trouxe uma pequena escultura feita em rocha negra. Ele a carregava com as duas mãos, fazendo um grande esforço, mesmo sendo uma peça pequena. O preço da peça era desencorajador. O geólogo não costumava comprar este tipo de coisa, já não era a primeira vez que fazia parte de uma expedição, e os souvenir foram perdendo o encanto ao longo do tempo. Mas aquele lhe chamou a atenção, por um bom motivo: ele não conseguira reconhecer aquele mineral. Lembrava o aspecto do carvão, mas era mais escuro, mais duro e muito mais pesado, bem mais do que o geólogo esperaria de qualquer rocha ou metal. O garoto, provavelmente, apenas vendia as pequenas esculturas, pois não teria força para esculpi-las. Analisando a dureza da peça ele se perguntava quem, no mundo, teria esta força, capaz de fazer obedecer à sua vontade um material tão resistente. A equipe, porém, tinha pressa. Pela primeira vez em muito tempo ele resolveu levar um souvenir.
Foram mais três semanas até o local da mastaba, e o geólogo não conseguia abandonar o estudo da estatueta. Ainda se passaram muitos dias até que a equipe de escavação finalmente encontrasse a entrada do local; o cientista coordenava a equipe durante o dia e fazia testes no mineral à noite, tentando descobrir do que exatamente se tratava aquele material. Lhe faltavam, porém, ferramentas que possibilitassem uma análise mais profunda e detalhada do que quer que fosse aquilo. Ele daria tudo por um microscópio naquele acampamento. Afinal, ele sequer conseguira confirmar se o objeto era feito em metal ou rocha. Aquecê-lo podia ajudar a confirmar isso, mas não teria como fazer, ali, um forno quente o suficiente para fazer alguma diferença na estatueta. Até o dia do acidente.
Metade da equipe de escavadores estava dentro da mastaba, derrubando uma porta lacrada, quando um erro de cálculo na quantidade de explosivos provocou um pequeno desmoronamento. Uma parte do teto se desprendeu e caiu sobre alguns trabalhadores. Não houveram mortes, mas todos se machucaram. O que intrigou o cientista, porém, foi a presença de uma substância negra e pastosa armazenada num compartimento aparentemente secreto entre o teto daquela câmara e o piso acima. O líquido provavelmente escoara, devido à inclinação do local em que estava, até alguns pequenos orifícios sobre a porta, criando o efeito de uma cascata. O geólogo já tinha percebido os orifícios, mas pareciam apenas sinais da corrosão do tempo. Quem fez aquilo provavelmente não queria que se descobrisse o ocorrido depois. O que ele não entendia, porém, era como aquela mistura, fosse o que fosse, tinha resistido ainda líquida por tanto tempo. Estava espessa, claro, mas parecia mais o fruto de impurezas do que de uma possível evaporação. O que era bem estranho, aliás. Ele recolheu um pouco para tentar estudar o que era aquela coisa, e os trabalhadores, feridos e sujos daquele musgo, foram levados ao médico. A expedição estava se mostrando cada vez mais produtiva, e não apenas do ponto de vista arqueológico.
Nos dias seguintes tudo caminhou calmamente. O geólogo desistiu de encarar as substâncias desconhecidas, o que em nada ajudava, e deixar a ansiedade de entender o que eram aquelas coisas para quando retornasse à civilização. Concentrou-se na escavação, tentando aumentar o ritmo de trabalho para voltar logo para onde tivesse um laboratório à disposição. Procurou por outros compartimentos secretos, quebrou paredes e tetos, desconfiou de todas as fissuras que viu, mas não encontrou quaisquer outros segredos. Aquele parecia ser o único compartimento escondido na mastaba. Até que o médico veio até ele e o tirou daquele ritmo.
Já descobriu o que era aquilo que caiu sobre os acidentados no dia do desabamento? Algum motivo específico para a pergunta, doutor? O geólogo e o médico pouco haviam se falado durante a viagem, sequer se lembrando dos nomes um do outro. Eram duas figuras realmente diversas. O rosto sem pêlos, quase afeminado do médico contrastava com a espessa barba do geógrafo, que era consideravelmente mais velho. Era, também, a primeira experiência do médico em expedições, ainda que tivesse sido muito bem recomendado. Os trabalhadores estão tendo complicações muito incomuns com os ferimentos daquele dia. O rosto do médico tinha sinais de seriedade desesperada.
Ora, posso garantir que não são incomuns. Você não tem onde limpar seus instrumentos, os remédios são poucos, as instalações médicas quase improvisadas. Num ambiente como esse nada é incomum, doutor. O geólogo falava com a autoridade calma que apenas a experiência pode gerar. Mas nada justifica o que está acontecendo, insistiu o médico. E o que está acontecendo, doutor? O geólogo esperava por problemas que ele julgava comuns. Eu prefiro mostrar.
Caminharam até a grande barraca que servia de enfermaria, marcada com uma cruz vermelha, a Cruz de São Jorge, num fundo branco, representação da bandeira inglesa na lona do teto, que o estampava na esperança de evitar ataques acidentais. Não era estranho que tribos nômades tentassem impedir que os pesquisadores procurassem as pegadas das civilizações antigas pelas areias egípcias, e ser reconhecido como inglês antes dos tiros serem disparados era um grande alívio. Conforme se aproximavam o geólogo começou a escutar, no início baixos, e então seguindo num crescente, gemidos sem fim. Alguns lembravam mais a grunhidos, a pura dor em forma de som. Ele não pode evitar um calafrio logo antes de atravessar a cortina que servia de porta, e a náusea logo após a travessia.
O senhor não os trata?! O geólogo suava frio.
As feridas dos trabalhadores eram manchas negras em seus corpos, cheirando a putrefação. Todos agonizavam horrivelmente. Os gemidos eram trêmulos, do tipo que demonstram uma dor que não se aguenta mais sentir. Ele pensou em tocar no mais próximo, para confirmar a febre que com certeza existia, mas a coragem lhe faltou. Todas as feridas foram limpas e tratadas, senhor. Isso é o estranho. Mesmo os menores arranhões não cicatrizam, e pior, apodrecem. Mas isso não é o pior que o senhor vai ver aqui. Essas palavras encheram a alma do geólogo de terror, e ele quase fugiu daquele lugar que lhe lembrava às lamentações que com certeza existiriam no inferno. O médico o chamou a uma segunda sala dentro da imensa barraca. Mesmo antes de entrar começava a ter uma crise nervosa, as mãos tremiam, o suor frio lhe ardia nos olhos. Obrigou-se a atravessar a cortina com o maior dos pesares. E então chorou.
O braço dele estava quebrado e tomado pela ferida, e fui obrigado a amputá-lo; a voz do médico estava claramente abalada. Claro que isso que você vê era imprevisível. O que quer que tenha caído sobre esses homens, impede que cicatrizem qualquer ferimento. Ele sangrou ininterruptamente, nada conseguia estancar o braço cortado. Mesmo o fogo foi inútil.
O homem sobre a mesa estava pálido, o corpo inteiro enrugado, como se estivesse vazio, e apodrecendo a olhos vistos. A respiração fraca era um baixo arranhar de cordas vocais, pior do que qualquer grupo, ou mesmo gemido, que se pudesse ouvir, fosse em vida ou em pesadelos. Demorou um longo instante até que o quebra-cabeça se montasse na mente do geólogo.
Mas como ele está vivo se não foi possível estancar o braço? Os olhos em pânico do médico denunciavam seus pensamentos. Não há explicação. Ele não tem mais sangue. Ele deveria estar morto! Só invés disso, está em algum lugar entre a vida e a morte. Algum lugar de muita dor.
Quando saiu da tenda o geólogo não era mais o mesmo. Mate-os. Ele se lembrava das palavras ditas ao médico. Vamos dar-lhes ao menos um fim para esta dor. Descubra um meio e mate-os.
À noite foi feita uma grande fogueira no meio do acampamento, que tomaria o caminho de casa na manhã seguinte. Apenas o fogo colocaria fim ao sofrimento daquelas pobres almas. Todos haviam concordado que era arriscado demais ficar naquele lugar amaldiçoado. O geólogo atirou ao fogo o recipiente com o líquido viscoso, perigoso demais para que se descobrisse exatamente o que era aquilo. Atirou à fogueira, também, a pequena e pesada estatueta adquirida na viagem. Não queria de nada para lembrá-lo do que havia presenciado naquela expedição. A estatueta pegou fogo facilmente, e mesmo depois que toda a pira já estava apagada e fria, ainda exibida um forte e muito quente fogaréu. O geólogo a colocou numa panela com a ajuda de uma pá, cujo metal distorceu sob o peso e alta temperatura da peça. O fogo durou ainda muitos dias de viagem e estragou os dois caldeirões mais resistentes da caravana. O geólogo interrompeu a viagem no oásis em que havia adquirido a estatueta; precisava descobrir a origem do que ele havia batizado de Carvânico.

Na imagem: León Cogniet (1833-35): L'Expédition d'Egypte sous
les ordres de Bonaparte. Museu do  Louvre, Paris.

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